andré comte-sponville:  o desejo,  o amor  e  a felicidade



No livro "A felicidade desesperadamente", o filósofo André Comte-Sponville escreveu:

"O que é o desejo? A resposta que gostaria de evocar em primeiro lugar, e que vai atravessar toda a história da filosofia, é formulada por Platão num dos seus livros mais famosos, O banquete. Como seu título indica, trata-se de uma refeição entre amigos, no caso para festejar o sucesso de um deles num concurso de tragédia. Como eles sabem que quando se janta entre amigos o principal prazer não é a qualidade dos pratos mas a qualidade da conversa - quanto à comida, os criados cuidam dela -, resolvem escolher um bom tema de discussão: o amor. Cada um vai dar sua definição e fazer seu elogio do amor. Como não é meu tema, só retenho aqui a definição de Sócrates, por cuja boca Platão costuma se exprimir. O que é o amor? Para resumir, Sócrates dá a seguinte resposta: "o amor é desejo, e o desejo é falta." E Platão reforça: "O que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor." Essa idéia vai até os dias de hoje. Por exemplo, em Sartre: "O homem é fundamentalmente desejo de ser" e "o desejo é falta". É o que nos fada ao nada ou à caverna, digamos ao idealismo: o ser está alhures, o ser é o que falta! Aí está por que a felicidade, necessariamente, é perdida.

Na medida em que Platão tem razão, ou na medida em que somos platônicos (mas no sentido de um platonismo espontâneo), na medida em que desejamos o que nos falta, é impossível sermos felizes. Por quê? Porque o desejo é falta, e porque a falta é um sofrimento. Como você pode querer ser feliz se lhe falta, precisamente, aquilo que você deseja? No fundo, o que é ser feliz? Evoquei a resposta que encontramos em Platão, Epicuro, Kant, em qualquer um: "ser feliz é ter o que se deseja." Não necessariamente tudo o que se deseja, porque nesse caso é fácil compreender que nunca seremos felizes e que a felicidade, como diz Kant, seria um ideal não da razão mas da imaginação. Ser feliz não é ter tudo o que se deseja, mas pelo menos uma boa parte, talvez a maior parte, do que se deseja. Seja. Mas, se o desejo é falta, só desejamos, por definição, o que não temos. Ora, se só desejamos o que não temos, nunca temos o que desejamos, logo nunca somos felizes. Não que o desejo nunca seja satisfeito, a vida não é tão difícil assim. Mas é que, assim que um desejo é satisfeito, já não há falta, logo já não há desejo. Assim que um desejo é satisfeito, ele se abole como desejo: "O prazer", escreverá Sartre, "é a morte e o fracasso do desejo." E, longe de ter o que desejamos, temos então o que desejávamos e já não desejamos. Como ser feliz não é ter o que desejávamos mas ter o que desejamos, isso nunca pode acontecer (já que, mais uma vez, só desejamos o que não temos). De modo que ora desejamos o que não temos, e sofremos com essa falta, ora temos o que, portanto, já não desejamos - e nos entediamos, como escreverá Schopenhauer, ou nos apressamos a desejar outra coisa. Lucrécio, bem antes de Schopenhauer, dissera o essencial: "Giramos sempre no mesmo círculo sem poder sair... Enquanto o objeto de nossos desejos permanece distante, ele nos parece superior a todo o resto; se ele é nosso, passamos a desejar outra coisa, e a mesma sede da vida nos mantém em permanente tensão..." Não há amor feliz: na medida em que o desejo é falta, a felicidade é perdida.

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É o que Schopenhauer, como discípulo genial de Platão, resumirá bem mais tarde, no século XIX, numa frase que costumo dizer que é a mais triste da história da filosofia. Quando desejo o que não tenho, é a falta, a frustração, o que Schopenhauer chama de sofrimento. E quando o desejo é satisfeito? Já não é sofrimento, uma vez que já não há falta. Não é felicidade, uma vez que já não há desejo. É o que Schopenhauer chama de tédio, que é a ausência da felicidade no lugar mesmo da sua presença esperada. Você pensava: "Como eu seria feliz se..." E ora o se não se realiza, e você é infeliz; ora ele se realiza, e você nem por isso é feliz: você se entedia ou deseja outra coisa. Donde a frase que eu anunciava e que resume tão tristemente o essencial: "A vida oscila pois, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio." Sofrimento porque eu desejo o que não tenho e porque sofro com essa falta; tédio porque tenho o que, por conseguinte, já não desejo.

"Há duas catástrofes na existência", dizia George Bernard Shaw: "a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando são." Frustração ou decepção. Sofrimento ou tédio. Inanição ou inanidade. É o mundo do Eclesiastes: tudo é vaidade e correr atrás do vento.

Porque o desejo é falta e, na medida em que é falta, a felicidade necessariamente é perdida. É o que eu chamo de as armadilhas da esperança - sendo a esperança a própria falta no tempo e na ignorância. Só esperamos o que não temos. Tentem um pouco, só para ver, ter esperança de estarem sentados! Não vão conseguir, simplesmente porque estão sentados. Só esperamos o que não temos, e por isso mesmo somos tanto menos felizes quando mais esperamos ser felizes. Estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca. A partir do momento em que esperamos a felicidade ("Como eu seria feliz se..."), não podemos escapar da decepção: seja porque a esperança não é satisfeita (sofrimento, frustração), seja porque ela o é (tédio ou, mais uma vez, frustração: como só podemos desejar o que falta, desejamos imediatamente outra coisa e por isso não somos felizes...). É o que Woody Allen resume numa fórmula: "Como eu seria feliz se fosse feliz". É impossível portanto que ele o seja algum dia, já que está constantemente esperando vir a sê-lo. É também o que Pascal, num nível de genialidade no mínimo comparável, resume a seu modo nos Pensamentos. Trata-se de um fragmento de umas vinte linhas, consagrado ao tempo. Pascal explica que jamais vivemos para o presente: vivemos um pouco para o passado, explica ele, e principalmente muito, muito, para o futuro. O fragmento termina da seguinte maneira: "Assim, nunca vivemos, esperamos viver; e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos."

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Porque o sábio (o sábio que não sou, é bom esclarecer, e que sem
dúvida ninguém aqui pretende ser; mas, como diziam os estóicos, se você quer avançar, precisa saber aonde vai; digamos que a sabedoria é a meta que fixamos para nós, como uma idéia reguladora, para tentar avançar...), o sábio, dizia eu, não tem mais nada a esperar/aguardar, nem a esperar/ter esperança. Por ser plenamente feliz, não lhe falta nada. E, porque não lhe falta nada, é plenamente feliz.

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Como esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sábio não espera nada. Não que ele saiba tudo (ninguém sabe tudo), nem que possa tudo (ele não é Deus), nem mesmo que ele seja só prazer (o sábio, como qualquer um, pode ter uma dor de dente), mas porque ele cessou de desejar outra coisa além do que sabe, ou do que pode, ou do que goza. Ele não deseja mais que o real, de que faz parte, e esse desejo, sempre satisfeito - já que o real, por definição, nunca falta: o real nunca está ausente -, esse desejo pois, sempre satisfeito, é então uma alegria plena, que não carece de nada. É o que se chama felicidade.

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De fato o que é o amor? Eu evocava, ao começar, a definição de Platão, segundo a qual o amor é desejo e o desejo é falta. Terminemos com a definição de Spinoza. Este último concordaria com Platão para dizer que o amor é desejo; mas com certeza não para dizer que o desejo é falta. Para Spinoza, o desejo não é falta, o desejo é potência: potência de existir, potência de agir, potência de gozar e de se regozijar.

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Quanto ao amor, também não é falta (já que é desejo e já que o desejo é potência): o amor é alegria. É uma definição que encontramos no livro III da Ética: O amor é uma alegria que a idéia da sua causa acompanha. É uma definição de filósofo, abstrata como convém, mas tentemos compreendê-la. O que isso quer dizer? O seguinte, que já encontrávamos em Aristóteles: "Amar é regozijar-se" ou, mais exatamente (já que é necessária a idéia de uma causa), regozijar-se com. Um exemplo? Imagine que alguém lhe diga esta noite, daqui a pouco: "Fico contente com a idéia de que você existe." Ou então: "Há uma grande alegria em mim; e a causa da minha alegria é a idéia de que você existe." Ou ainda, mais simplesmente: "Quando penso que você existe, fico contente..." Você vai considerar isso uma declaração de amor, e evidentemente com razão. Mas terá também muita sorte. Primeiro porque é uma declaração spinozista de amor, o que não acontece todos os dias (muita gente morreu sem ter entendido isso; aproveite!). Depois, e principalmente, porque é uma declaração de amor que não lhe pede nada. E isso é simplesmente excepcional. Vocês irão objetar: "Mas, quando alguém diz 'Eu te amo', também não está pedindo nada..." Está sim. E não apenas que o outro responda "eu também". Ou antes, tudo depende de que tipo de amor se declara. Se o amor que você declara é falta (como em Platão, mas a questão não é ser platônico ou não em termos de doutrina, a questão é estar ou não em Platão; eu nunca fui platônico, mas vivo com freqüência em Platão, como todo o mundo: toda vez que amamos o que falta, estamos em Platão), quando você diz "Eu te amo", isso significa "Você me falta" e portanto "Eu te quero" ("Te quiero", como dizem os espanhóis). Então é, sim, pedir alguma coisa, é até mesmo pedir tudo, já que é pedir alguém, já que é pedir a própria pessoa! "Eu te amo: quero que você seja minha." Ao passo que dizer "Estou contente com a idéia de que você existe" não é pedir absolutamente nada: é manifestar uma alegria, em outras palavras um amor, que, é claro, pode ser acompanhado de um desejo de união ou de posse, mas que não poderia ser reduzido a ele. Tudo depende do tipo de amor de que se dá prova, por que tipo de objeto. E aí que residem, explica Spinoza, "toda a nossa felicidade e toda a nossa miséria".

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A felicidade não é um absoluto, é um processo, um movimento, um equilíbrio, só que instável (somos mais ou menos felizes), uma vitória, só que frágil, sempre a ser defendida, sempre a ser continuada ou recomeçada."